terça-feira, abril 05, 2022

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Existe um tempo entre o que não se sabe que vai acontecer, que só anuncia, e espera. O tempo antes de um grande temporal. O tempo antes que inicie o trabalho de parto. O tempo antes que termine o último dia de trabalho do ano. O último dia de trabalho da vida. O tempo que antecede a última respiração. Tempos do suspenso. Quando arrumava a cama, gostava de sacudir os lençóis no quarto da casa de madeira da avó. Por muito tempo ficavam levitando no ar, sob o sol que entrava pela janela, as formas que brilhavam, giravam, subiam e desciam. Até tudo se acomodar. Novamente. Em nenhum outro lugar nunca mais foi assim. Depois foi só poeira. Na memória o conforto para a mudança e a compreensão de que tudo vai descansar diante dos meus olhos espantados. Uma vida toda guardada naquele quarto de vó, adormecida e despertada tantas vezes.

. Até que eu precisei crescer. E todas as outras mortes vieram. 

 agora

segunda-feira, abril 04, 2022

Uma taça não é só uma taça

é pouco de corpo

um colo

o desejo

uma vitória 


É um brinde.  

Uma de outra que aguarda

anúncio, início, fim

memória


Uma taça é só uma taça.


Amor em nosso assoalho

estilhaçado


agora

Li muitos textos sobre caixas.
Profundos, delicados, crueis.
Caixas pra classificar problemas, pra recortar e guardar palavras, pra prender o mal ou revelar a esperança.

Uma encaixotou uma mulher. Outra, retratos de família. Houve a das memórias da menina, com a bailarina e a música girando.

Sobre as minhas ninguém contou. 
Aprisionei em alguma a dor da filha perdida entre as quinquilharias 
e as mentiras servidas em almoço de domingo. Na outra acomodei a mãe chorando na sua escuridão com a chave perdida. 

Guardo caixas vazias, com bijouterias quebradas, com fotografias caóticas e desordenadas. Não conversam mais sobre quem são as pessoas que comemoram aniversários ou se abraçam como se fossem íntimas. Dali só as crianças permanecem. Sementes, se salvaram da amargura e do ressentimento. Não são fantasmas impressos no vazio do tempo. Viraram nome próprio. Mulher. Sobrevivente das mentiras silenciadas. Nós. Agarram vida com dedos de quem arrebenta segredos, destroça dores antigas e devora misérias familiares com dentes  furiosos.

O mundo é parido dentro do estômago de quem arrancou os cordões.

domingo, abril 03, 2022

qual enrodilhou-se na cama
qual preparou o café
qual abraçou a criança
qual retribuiu o beijo
qual engoliu o grito
qual calou o choro
qual voltou do trabalho
qual gozou
qual escreveu as palavras
qual pediu desculpas
qual pediu licença
qual pediu as horas
qual perdeu as horas
qual perdeu tempo

O que passou
Sem que ela soubesse
qual