sempre olhar o avesso, minha vó dizia
no que não se vê é que está a beleza
quase poesia
vida é bordada no corpo com
pequenos suspiros
deixar a falta como quem deixa ir o inverno, com saudade do calor do abraço quente que protege do minuano arranhando a pele. deixar ir como quem embala com cuidado as boas lembranças. a mão nas minhas costas dizendo que tudo vai ficar bem. café frio. riso. carnaval gritando amor em um pote de conserva. amor-remédio, ponte, embarcação. as palavras erradas. aliterações. as fotografias. desejo de sorvete em noite escura. todos os fósforos queimados. dois animais selvagens no meio da rua. uma caneca quebrada. fechar em silêncio a caixa em que eu escrevi muitas vezes fim.
sei bem sobre encontrar caminho pra não voltar. aprendi cedo a impermanência. pequena já costumava trocar os calçados nos pés e achava divertido tentar correr com eles até estatelar. tenho algumas cicatrizes: sempre o mesmo joelho muitas vezes ralado, onze pontos no supercílio, um coração piegas. foi assim que aprendi a mentir o riso; esse soluço. como chorar com o chinelo direito no pé esquerdo.
como faz pra estar quando tudo dentro é fissura?
não falar muito
não rir alto
se puder, só falar sobre o que é agradável
ser agradável
inclusive aos olhos
ser adequada aos ambientes
frequentar bons ambientes
comer sem descolar os cotovelos
(quem tem asa é galinha)
alimentar boas relações
adequadas
minha avó criava muitos bichos. morava numa casa pré-fabricada que cheirava a quesosene uma vez por ano. eu cheirava a suor, poeira e Kollynos. os dias acabavam no rio às dez horas da noite. as crianças gritavam nas ruas inteiras, encondiam-se, encontravam-se, empulgavam-se com os cachorros e metiam-se com os pássaros nos ninhos. eu tinha medo de sapo, de mboitatá e da foto do tio-avô morto, que ficava sob a renda da cortina cor de rosa. minha avó era um mundo inteiro e cheirava a alho, pão caseiro e colônia de rosas barata.
lá, migalhas eram sobre galinhas e codornas. nunca sobre amor, essa fartura.