sexta-feira, outubro 27, 2023

deixar a falta como quem deixa ir o inverno, com saudade do calor do abraço quente que protege do minuano arranhando a pele. deixar ir como quem embala com cuidado as boas lembranças. a mão nas minhas costas dizendo que tudo vai ficar bem. café frio. riso. carnaval gritando amor em um pote de conserva. amor-remédio, ponte, embarcação. as palavras erradas. aliterações. as fotografias. desejo de sorvete em noite escura. todos os fósforos queimados. dois animais selvagens no meio da rua. uma caneca quebrada. fechar em silêncio a caixa em que eu escrevi muitas vezes fim.

domingo, outubro 22, 2023

sei bem sobre encontrar caminho pra não voltar. aprendi cedo a impermanência. pequena já costumava trocar os calçados nos pés e achava divertido tentar correr com eles até estatelar. tenho algumas cicatrizes: sempre o mesmo joelho muitas vezes ralado, onze pontos no supercílio, um coração piegas. foi assim que aprendi a mentir o riso; esse soluço. como chorar com o chinelo direito no pé esquerdo.

como faz pra estar quando tudo dentro é fissura?

sexta-feira, outubro 13, 2023

nunca pedir pra não incomodar
nem mais bolacha, 
nem pra dormir fora,
nem pra não apagar a luz,
nem pra ganhar colo

não falar muito

não rir alto

se puder, só falar sobre o que é agradável 

ser agradável

inclusive aos olhos

ser adequada aos ambientes

frequentar bons ambientes

comer sem descolar os cotovelos

(quem tem asa é galinha)

alimentar boas relações 

adequadas


minha avó criava muitos bichos. morava numa casa pré-fabricada que cheirava a quesosene uma vez por ano. eu cheirava a suor, poeira e Kollynos. os dias acabavam no rio às dez horas da noite. as crianças gritavam nas ruas inteiras, encondiam-se, encontravam-se, empulgavam-se com os cachorros e metiam-se com os pássaros nos ninhos. eu tinha medo de sapo, de mboitatá e da foto do tio-avô morto, que ficava sob a renda da cortina cor de rosa. minha avó era um mundo inteiro e cheirava a alho, pão caseiro e colônia de rosas barata.


lá, migalhas eram sobre galinhas e codornas. nunca sobre amor, essa fartura. 

terça-feira, outubro 10, 2023

ali onde há pouco havia acordado o ventaval até parece agora só memória da casa da infância
uma varanda larga onde ela gostava de espalhar as pedras que buscava na rua cheia de terra

procurava as mais redondas para fazer delas o que inventava: um cachorro gordo, um pai que estava, uma mãe carinhosa, o irmãozinho que ria ao encontro dos abraços, amigas com quem dividir um sanduíche no recreio, um avô nunca conhecido

enquanto as rolava sobre o ladrilho vermelho, entre seus dedos infantis, preenchia de mentiras os vazios que carregaria por toda a sua existência


sábado, outubro 07, 2023

 prometerei nunca mais escrever saudade como quem abraça quente no domingo
nem dobrar com cuidado as palavras para guardá-las delicadas nas gavetas das coisas que doem
prometerei não sorrir diante das promessas nunca cumpridas, dos beijos roubados em muros vadios, das noites mal dormidas pelos sonhos desfeitos
prometerei ser outro nome qualquer, outro livro abandonado na estante, outra imagem roubada entre tantas outras que os olhos mal viram
prometerei o desejado silêncio em constrangedoras conversas 
e não oferecer mais nenhuma pergunta nas páginas de um bloco de notas 
aquele que eu nomeei como "futuro" 
(o mesmo onde agora eu anoto a lista de compras e as contas a pagar)

sexta-feira, outubro 06, 2023

 guardei sozinha nos meus olhos míopes aquela quaresmeira em flor

o corpo deserto mal viu minguar em tanto branco e roxo o sofrimento

primavera, dizem, é também ressurreição

terça-feira, outubro 03, 2023

 menti bastante ao ler sinais

aquela lua bonita
uma saia amarela-ovo
a lagarta listrada do poema
um tapete de folhas miúdas na calçada
a rádio cantava dragão tatuado no braço 
outras aves noturnas, voejai
naveguei nos olhos dos meus gatos
verde mar profundo
em chamas

estrela feito amor é algo que nasce morta e a gente toda acha bonita de se ver