quinta-feira, julho 31, 2008

gosto de te ver assim
resto de noite na minha boca
entre os lençóis de lavanda
nas notas daquela canção
na caligrafia das minhas anotações

teu gesto escorre pelo papel
feito chuva de domingo

terça-feira, julho 29, 2008

ligação de cobrança
caminhão de gás
torneira mal fechada
construção no quintal ao lado de casa
dança
mendigo pedindo moeda na calçada
corpo pedindo água
cachaça
música ruim no rádio do vizinho
telefone ocupado
tu
tu
tu

A vida é um disco riscado.

segunda-feira, julho 28, 2008

Os gatos (excerto)

(..)

Os gatos jamais me dêem a sensação
à toa
de ter adormecido antes do perigo
onde há carne, e líquido, e suor lento

engolindo a vontade da Palavra.
Que culpa tenho deste sono que se origina
antes de mim,
na dúvida de saber que sorriso fez

os gatos de músculo me atentando
me querendo sem roupas e ao frio
dos telhados

escrevendo as coisas felinas confundidas
e seus pulos imitando sem desenho
“onde a loucura dorme inteira e sem lacunas”.

Ana C.

quarta-feira, julho 23, 2008

luzes acesas
vozes amigas
chove melhor

Alice Ruiz

sexta-feira, julho 18, 2008

O dia da criação

Macho e fêmea os criou.
Bíblia: Gênese, 1, 27



I


Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.



II


Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado.
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado.
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado.
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado.
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado.
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado.
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado.
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado.
Há um grande espírito de porco
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado.
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado.
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado.
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado.
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado.
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado.
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado.
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado.
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado.
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado.
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado.
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado.
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado.
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado.
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado.
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado.
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado.
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado.
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado.
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado.
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado.
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado.
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado.
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado.



III


Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia,
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.



Vinícius de Morais

(in Poemas, sonetos e baladas
in Antologia Poética
in Poesia completa e prosa: "O encontro do cotidiano"

*****

Tá, eu sei que é sexta, mas esse poema não saiu da minha cabeça.

segunda-feira, julho 14, 2008

Era noite quando ela amanheceu. Os olhos roucos, cansados de tantos ver. A mão pequena tateou pelo escuro do quarto à procura do corpo ao seu lado na cama. Encontrou o sussurro perdido na sombra. Era o vento na rua ou a voz do fantasma quem a chamava?

Esfregou com força o rosto no tecido da fronha. O travesseiro era o silente e fiel depositário de seus segredos. (Se o partissem, despejaria em correnteza todas as suas lágrimas contidas)

Queria mover-se e precipitar-se para a noite. Chovia agora uma água miúda que tocava no vidro uma delicada partitura. Queria chover-se também, confundir as gotas. Fundir pureza e dor.

O corpo pregado à cama respirava autônomo. Ele não lhe pertencia mais. Emoldurado entre os lençóis desfeitos permanecia onírico.

Todas as suas partes uivaram em cio agudo, inundando de não-palavras a escuridão.

quinta-feira, julho 10, 2008

Comunhão

O corpo é partido.

a chaga rasgada do pulso
preenche de vinho o cálice

martelam badaladas
palavras em uníssono
gemidos em ladainha

já não há mãos enlaçadas
nem palavras de perdão.

(Madalena espalha as pedras para não perder o rumo)