terça-feira, novembro 18, 2008

Bossa

Não tenho mais tempo pras palavras
Larguei da poesia
Não quero mais essa mesma canção
Adeus, meu bem
Vou ser morena do samba de alguém

sexta-feira, novembro 14, 2008

Madrigal

ele pinta palavras em meu corpo
renascentista
a madrugada é nua e farta
baixa contínua em nós
descendente é o inferno
cadência perfeita
onde descobri a pureza

terça-feira, novembro 04, 2008

Pequena morte

COMA
(me)

domingo, novembro 02, 2008

Desdenho o amor
como quem enxerga o pó sobre os livros da estante
como quem saliva diante da mesa em banquete

Passa por mim
Nem sinto sede

O amor é brisa nas minhas cortinas fechadas
Busca imprevista fresta
Chove a vidraça

Sem susto

Torno a dormir
Faz escuro e estou cansada

quinta-feira, outubro 30, 2008

pra que asas se posso cantar
meus abismos nas linhas das tuas mãos
engulo o ar para não respirar-te
e trago a noite
como quem rege uma oração

terça-feira, setembro 23, 2008

o dia adormece em cinza e púrpura
todas as palavras esquecidas sussurradas no vento
meus olhos como nas histórias de infância
chove no último andar e eu nem tenho medo da queda
como você
como quem não pensa
como quem se alimenta porque precisa viver

terça-feira, setembro 02, 2008

a mão abana delicadamente um lenço
bandeira tremulante em adeus
sádico prazer
hábito

sequer Ela chora
sequer Ele vê

ficar não é escolha
é esquecimento



.

terça-feira, agosto 26, 2008

Meu queixo descansa em teu ombro adormecido
e meus olhos perdem-se na curva
traço entre uma pinta e a outra no mapa das tuas costas

Canta uma voz conhecida os músculos exaustos do teu corpo
(em que me atiro feito sabiá em manhã de segunda-feira)
feito rio em correnteza

segunda-feira, agosto 25, 2008

Fragmentos do discurso amoroso

Tudo pode ser simples quando bem dito, quando bem desejado, quando bem divertido. O discurso amoroso, considerando-o aqui como aquele que se dispõe ao encantamento, permite, tal como Barthes o fez, expressar (sem máscaras) aquilo que é normalmente secreto. Carpe diem, babe. Você está certo:

"As coisas bem ditas:
benditas coisas"

quinta-feira, agosto 21, 2008

Esse mar que Dori cantou:
as ondas do teu cabelo menino
o azul imenso do teu olho pescador
imprevisto e transparente
tal brincadeira de amor

segunda-feira, agosto 18, 2008

As letras me aprenderam menina

Nem sei quanto tempo passou
quanta vida se precisa para respirar

Não aprendi a contar com a sorte
com os números - esses inimigos

Um pouco de ar é suspiro

Meus dedos são dez
Meus medos infinitos

E digo porque contei contigo

(a chave continua no umbigo?)

quinta-feira, agosto 14, 2008

Não são teus olhos em espiral
Não é tua boca tatuada em minhas costas
Não são as palavras que me roubas
Nem os segredos roucos
Não é o gozo
Não é o vento
Não é o abismo
São as ondas do teu corpo molhado
Eu tenho medo é do mar

domingo, agosto 10, 2008

Não entre na quinquilharia
amor, verdades, mobília
De ti quero o silêncio
(eu gosto das casas vazias)
Do teu dia eu quero o sol
algum amanhecer
palavras pra poesia
(porque eu preciso dizer)

sexta-feira, agosto 08, 2008

quando me beija
o que devora
é meu grito

quando me devora
o que descobre
é meu susto

quinta-feira, agosto 07, 2008

esse teu cheiro de fruto
- se o tenho à boca -
(ah)
nem coro
devoro

terça-feira, agosto 05, 2008

Atenção,
isso é um aviso:
eu não sou um lago manso,
eu sou o Abismo.

Fica longe,
olha o perigo!
Se me amar agora,
vai me odiar um dia.

(você pode até gostar da minha anatomia,
mas vai me chamar de grande filha filha de uma vaca)

Pra quem gosta de cartas marcadas:
Eu não valho nada!
Sou Rainha.
(e gosto das cabeças cortadas)

Cuidado, rapaz!

Blefa direito
ou não descobre do que eu sou capaz...

sábado, agosto 02, 2008

Sempre me surpreendo com o que sou capaz de dizer quando bebo. Mas me surpreendo ainda mais com o que os outros dizem na mesa ao lado quando o fazem. Aí vai então, da série Frases alheias de boteco: A vida é um sexo!

(Análises sobre os sentidos ou produções acerca da situação hipotética em que foi dita tal pérola são bem-vindas)

quinta-feira, julho 31, 2008

gosto de te ver assim
resto de noite na minha boca
entre os lençóis de lavanda
nas notas daquela canção
na caligrafia das minhas anotações

teu gesto escorre pelo papel
feito chuva de domingo

terça-feira, julho 29, 2008

ligação de cobrança
caminhão de gás
torneira mal fechada
construção no quintal ao lado de casa
dança
mendigo pedindo moeda na calçada
corpo pedindo água
cachaça
música ruim no rádio do vizinho
telefone ocupado
tu
tu
tu

A vida é um disco riscado.

segunda-feira, julho 28, 2008

Os gatos (excerto)

(..)

Os gatos jamais me dêem a sensação
à toa
de ter adormecido antes do perigo
onde há carne, e líquido, e suor lento

engolindo a vontade da Palavra.
Que culpa tenho deste sono que se origina
antes de mim,
na dúvida de saber que sorriso fez

os gatos de músculo me atentando
me querendo sem roupas e ao frio
dos telhados

escrevendo as coisas felinas confundidas
e seus pulos imitando sem desenho
“onde a loucura dorme inteira e sem lacunas”.

Ana C.

quarta-feira, julho 23, 2008

luzes acesas
vozes amigas
chove melhor

Alice Ruiz

sexta-feira, julho 18, 2008

O dia da criação

Macho e fêmea os criou.
Bíblia: Gênese, 1, 27



I


Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.



II


Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado.
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado.
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado.
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado.
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado.
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado.
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado.
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado.
Há um grande espírito de porco
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado.
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado.
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado.
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado.
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado.
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado.
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado.
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado.
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado.
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado.
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado.
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado.
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado.
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado.
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado.
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado.
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado.
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado.
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado.
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado.
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado.
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado.
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado.
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado.



III


Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia,
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.



Vinícius de Morais

(in Poemas, sonetos e baladas
in Antologia Poética
in Poesia completa e prosa: "O encontro do cotidiano"

*****

Tá, eu sei que é sexta, mas esse poema não saiu da minha cabeça.

segunda-feira, julho 14, 2008

Era noite quando ela amanheceu. Os olhos roucos, cansados de tantos ver. A mão pequena tateou pelo escuro do quarto à procura do corpo ao seu lado na cama. Encontrou o sussurro perdido na sombra. Era o vento na rua ou a voz do fantasma quem a chamava?

Esfregou com força o rosto no tecido da fronha. O travesseiro era o silente e fiel depositário de seus segredos. (Se o partissem, despejaria em correnteza todas as suas lágrimas contidas)

Queria mover-se e precipitar-se para a noite. Chovia agora uma água miúda que tocava no vidro uma delicada partitura. Queria chover-se também, confundir as gotas. Fundir pureza e dor.

O corpo pregado à cama respirava autônomo. Ele não lhe pertencia mais. Emoldurado entre os lençóis desfeitos permanecia onírico.

Todas as suas partes uivaram em cio agudo, inundando de não-palavras a escuridão.

quinta-feira, julho 10, 2008

Comunhão

O corpo é partido.

a chaga rasgada do pulso
preenche de vinho o cálice

martelam badaladas
palavras em uníssono
gemidos em ladainha

já não há mãos enlaçadas
nem palavras de perdão.

(Madalena espalha as pedras para não perder o rumo)

domingo, junho 29, 2008

Dead line

Embalava as pernas. Desde criança embalava as pernas quando pensava. Gostava de sentir o vento morno enquanto observava a chaminé da Usina perfurando o céu. Do último andar era possível ver o sol ser engolido pelas águas escuras do Guaíba. E ele gostava de sentar-se ali, no terraço do edifício, os olhos ainda tontos de tanto ver. Depois disso, as idéias sempre chegavam.

................................

Seu corpo cortou o espaço e invadiu a calçada da Rua da Praia.

Era domingo e ele precisava da notícia.

quinta-feira, junho 12, 2008

Amor, sobrenome Passagem

Quando o Amor chegar, estarei inteira. Para poder ser sua, inteira. Porque Ele não aceitaria menos. Não aceitaria metade de mim (mesmo eu sendo metade sua, serei uma metade inteira).

Vai me ligar para saber o que levar para o jantar e eu vou pedir um corte de carne, pensando que deveria ter respondido Amor. Não haverá mais fome em mim quando Ele chegar. Com flores e suspiros.

O seu sorriso será tão encantador quanto os seus olhos quando me seduzirem, cúmplices. Ele saberá dizer o que precisa ser dito e, surpreendentemente, vou calar quando Ele chegar.

Vai arrancar-me a preguiça e eu vou roubar seus silêncios. Respeitaremos as pausas e os sinais fechados. Vamos beijar com o corpo, vamos ler juntos e em voz alta e seremos muito ridículos e banais: cinema, café, boteco, mercado. Par. Casalsinho. Pombos. Apaixonados. Mão dupla. Clichês.

Vamos dançar juntos - pela noite e pela vida. Gostaremos de chuva, de estradas, de estrelas, de lua cheia, de rios caudalosos, de sonhos vadios, de palavras, de abismos, de riscos e papéis.

Quando Ele esquecerá os tempos, os verbos e os nomes ao cruzar a porta e se reconhecer no espelho.

quarta-feira, junho 04, 2008

Vontade de te ver sorrir mundo. Vontade de rir do teu riso frouxo de menino-homem. Dos teus olhos estrelando, explodindo diante das minhas bobices de mulher-menina. Do meu choro de felicidade compartilhada e incontida. Porque não precisa mais ser secreta.

Um livro de bolso: citações de todos os nossos autores escritas com letra de professora em papel colorido. As músicas selecionadas pra ouvir dormindo, pra cantar sozinho, pra cantar comigo, pra sentir saudades, pra sentir. A camiseta com palavras de ordem. Uma caixinha com corações de origami: 365. Cartas. A frase de Frida Kahlo em moldura. (A vida passa sem que tu saibas disso.)

O presente é um armário repleto de sonhos guardados, esperando que o tempo mude pra poderem existir.

domingo, junho 01, 2008

Nasci enforcada no cordão umbilical.
Fui atropelada duas vezes: aos dois meses e dez anos depois
Usei botinhas ortopédicas.
Rolei três andares de escada aos quatro.
Sinto cólicas toda vez que menstruo.
Pari uma filha.
Já fui cinza.
Tenho palavras no corpo e nas mãos.
Tenho paixão pelo abismo
e um álbum de cicatrizes.

E me perguntas se tenho medo de sofrer...

sexta-feira, maio 30, 2008

No espelho partido
Alice espia o mundo
e todas as cabeças cortadas

segunda-feira, maio 26, 2008

Passa por mim
rio, riso, minuano
ponte para as lembranças

Peça
um monte de areia
um tanto de ar
um resto de amor

Diante dos olhos
o passado dá voltas
em torno do círculo

quinta-feira, maio 08, 2008

Considerações sobre nada

Estou lendo "Cartas apaixonadas de Frida", uma complilação das mensagens da artista mexicana Frida Kahlo aos seus amores: amigos queridos, familiares, namorados, amantes. Inspirador. Dá vontade de sair escrevendo tudo o que se passa na cabeça a qualquer das pessoas que rouba meus pensamentos. E é o que tenho feito.

São as cartas que eu não mando. O dia triste e o amor ainda guardado confessado ao amante perdido, a felicidade do riso frouxo que me dá minha filha em sua surpreendente floração, a gratidão aos amigos, as saudades de tanta gente, os medos e perguntas sem respostas aos pais, as expectativas de futuro sobre meus alunos.

As palavras têm escapado de mim como sempre fizeram as lágrimas. Aos borbotões, explodindo, aguaçando. E eu ando seca de qualquer outra coisa que não seja discurso.

quarta-feira, maio 07, 2008

Descansa Galatéia em almofadas rubras
A face morta e perfeita
Descansa Pigmaleão admirado
À sua frente sorri o Amor
Às suas costas ri Afrodite
Mas não é a alva mulher que ele admira
A obra é somente pedra bruta ante o cinzel
O que o artista vê quando grita
É Narciso preso no espelho

segunda-feira, maio 05, 2008

A media luz

Quando ele partiu, Mariana Rosa fumou um maço de cigarros e gastou três pacotes de lenços de papel. Durante um mês a voz dele deitou-se no lado direito da cama e sussurrou imoralidades em seu ouvido. Na última sexta-feira, no lixo do prédio, vários discos de Gardel foram encontrados. Todos quebrados.

domingo, maio 04, 2008

Uma mulher parindo um filho
Um gato no cio no telhado vizinho
Um bêbado dormindo na calçada do outro lado da rua
A vitória do time no campeonato estadual de futebol
Quarenta e seis minutos do segundo tempo
Quarenta e dois milímetros de cabelos a mais na cabeça
Alguns brancos
Um cigarro queimando sozinho no cinzeiro
Uma lista de supermercado
Uma fila de ônibus
Trinta dias
Nomes riscados na agenda de telefone
Três sacolas de lixo
Nove livros que ainda não foram lidos
Chuva
Tudo passa
Antes da cicatriz sempre existe a espera

sábado, maio 03, 2008

Chegou sem que ela percebesse
Tomou conta de seu corpo
de suas noites e de seus dias
Beijou-lhe as mãos, os seios, as têmporas
Tornou-se sua imagem no espelho
Outra e tão conhecida

Na última primavera,
escorregou os dedos sobre os longos cabelos
fechou seus olhos com delicadeza
(para que não o visse partir)

O Tempo não sabia, entretanto,
que a deixara grávida de Vida

quinta-feira, maio 01, 2008

no escuro, sobre o livro morno
descansam os olhos do menino
não há ponteiros pra gerar o tempo
em nuvens caminha o sonho
lento e velho como alma
sábio de que nunca é perdido
aquilo que se tem chave
o quarto murmura as pedras do caminho
em que saltita dourada dorothy

deveras
Melancolia não cabe em palavra
nem Amor

terça-feira, abril 29, 2008

"Rita, guardei essa mensagenzinha
Para que os dias nasçam em amarelo
e as flores brotem das vidraças
Para que as portas saiam correndo pela rua
e a passagem fique sempre escancarada
Guardei essa mensagenzinha pra ti
Para o teu travesseiro e teu vestido de bolinhas
Para teu rosto largo de mulher ligeira
para teus brotos que sempre explodem
E para as noites que nunca acabam
Guardei porque era tua"

E porque era minha, tomei a liberdade de publicar sem autorização prévia do Tiago Collovini, meu amigo-amor, que compartilha das palavras e dos silêncios todos.
Tomei a liberdade de publicar porque amor se divide, porque amor (se) alimenta, amor faz sorriso brotar (mesmo quando se pensa que ele não há).
Tomei a liberdade de publicar para agradecer aos amigos todos que me levam nos braços quando meus pés ardem ou minhas asas quebram ou meus sonhos entram em profunda letargia.
Pelas mãos, pelos pés, pelos ouvidos, pelas bocas repletas de beijos, chimarrão, alentos e cafés, pelos olhos, pelos textos próprios e alheios, pelo meu nome em vocativo, pelos seus em oração. Obrigada.

segunda-feira, abril 28, 2008



(Los Hermanos, "Adeus você", gravação ao vivo no Cine Íris. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=kcCco0I9OA0)

*******

Porque o resto é silêncio
E esqueci como se canta
E esqueci como se dança
E esqueci como se chora
E esqueci como se esquece
Porque eu grito no escuro
Porque eu sei
Só esqueci como dizer

domingo, abril 27, 2008

Tenho trinta e um anos, alguns meses e muitos dias
Não uso relógio de pulso
(meu descompassado segundo)
Mas tenho sempre pressa, Alice
Guardo longos silêncios
e tomo chá antes de dormir
Para lembrar que desde que nasci sou velha

sábado, abril 26, 2008

Bíblico

Carmela Pedrozo, sábia bruxa dos pampas, sempre dissera que derrubar sal era um sinal de desgraça próxima.
No dia 21 de abril de 2008, enquanto Margarida Pedrozo cozinhava, distraiu-se e deixou cair o vidro inteiro de sal. Lembrou-se da avó e derramou um rio de lágrimas, mas convenceu-se de que tudo não passava de superstição. Mais tarde, voltou a chorar. E de novo. E de novo.
Nos seguintes quarenta dias e nas seguintes quarenta noites, Margarida aprendeu também o significado da palavra dilúvio.

sexta-feira, abril 25, 2008

é hora de rasgar os versos
odiar cada palavra maldita
(tão bem ditas)
queimar os retratos
esvaziar o cinzeiro
lavar os lençóis e as taças
fechar com travas as portas
desfazer nós

evaporar-se

evaporar-se

nem corpo
nem cinza
nem pó

(morrer também é uma forma de respirar)

quinta-feira, abril 24, 2008

haicais (2000)

no varal, ao vento,
resquícios de corpo
perdendo tempo



***


O cetim sem ti
Emaranhado
Perde os sentidos



***


Amor-perfeito
Murchando na janela
Saudades dela

quarta-feira, abril 23, 2008

Salve, Jorge!

Jorge vestiu armadura
Fez o medo virar pó
Jorge, que era romano,
Queria tanto ser santo
Virou também homem só

Salve Jorge

Montou no cavalo branco
Como príncipe encantado
Trocou o mal pelo mal
Lança por encruzilhada
Pecado pelo altar

Salve Jorge

Jorge perdeu poesia
Jorge encontrou oração
Cansou do povo da rua
Levou a casa pra lua
Mata por dia um dragão




(** dia 23 de abril, dia de São Jorge/Ogum)

terça-feira, abril 22, 2008

Pandora guardou a Esperança
(e todos os sonhos alados)

Sobre eles, prendeu Nós

quarta-feira, abril 02, 2008

Sacrilégio

Se é santo teu nome
profano-o em minha boca
homem
pêlo, pele, pau
rasga-me a carne a navalha
explode meus poros
abertos

Se sempre fui santa
teu gozo me torna puta
mulher
cadela, vadia, cretina
embalo o menino nos seios
desabrocho a rosa orvalhada
secreta

Fiéis, adoremos

quinta-feira, março 27, 2008

Quaraí

No quintal da minha casa nasceu um deserto
Eu era pequena e gostava de queimar as solas dos pés na areia quente
Me fazia gigante e tocava com dedos de sombra o horizonte
Plantei toda querência nos fundos da minha infância
Pra inundar para sempre o meu particular sertão
a gravura na parede
os cabelos
a boca
a bolsa com bolinhas brancas
a carteira de sócio do time de futebol
as contas do colar
a costura da saia
os sapatos
tudo por dentro
vermelho
uma unha não
pra manter a sanidade

quarta-feira, março 26, 2008

quando eu era menina, eu gostava dos muros
havia o da escola e os beijos fugidios
capote que protegia o corpo dos olhos e do minuano
o da casa era travesseiro
compartilhar de estrelas
gaveta de cochichos

em todos me escondia
tornava-me grafite
escorrendo feito rímel em fim de festa
quando chovia

minha cidade tem um muro e ele não é meu
guarda os cabelos de um rio
ondas vermelhas em fim de tarde
suas meninas não tem segredos
nem corpos que se escondem
gravuras coloridas
escorrendo feito rímel em fim de festa
quando chove

terça-feira, março 25, 2008

no tempo em que lia sem óculos
ao revés
atravessado
bem de pertinho
as costas
os brancos
o lado
estava tudo gravado
eu te sabia de cor

e agora estes olhos fechados
pra não ler o fim da história?

sexta-feira, março 21, 2008

Um dia para Tiago

Acordou cedo, como sempre. Varrendo a escuridão e abrindo as janelas pra esvoaçar o sol pela calçada. Espantou os bêbados e seus tijolos. Adormeceu os postes. Fazia isso com a lentidão de quem repete por séculos o mesmo gesto. Uma letra tocando as margens do caderno de caligrafia, e de novo, e de novo, até tornar-se esfera. Como o sol que agora cochilava sobre os telhados da vizinhança. Um gato. Gordo. Como ele, pachorrento e velho. Sem uma utilidade qualquer. O dia postou-se em andor, pra ser santo. Respirou fundo. Era sertão na cidade baixa, mas o cheiro era de mar.

domingo, março 16, 2008

podia ser de março
pau, pedra, temporal
80% do meu corpo
a gota que falta pro final
berço de jangada e boto
podia banhar a menina que passa
espelho de lua com rã ancestral
podia ser chuvinha miudinha
podia chover sem parar
Odoiá, Yemanjá
podia encher a maré
abrir-se pelas mãos de Moisés
guardar o sal nas lágrimas de Portugal
agigantar-se, quase terra
sob aurora boreal
podia faltar, até

se não fossem seus olhos
azul seria só água

terça-feira, março 11, 2008

rasgo-me em mundos dispersos
rotas diversas
rodas de versos
pra que te percas de mim
pra que encontres o rumo
pra que acertes a flecha
entre os meridianos
compasso de minhas pernas abertas

sábado, fevereiro 23, 2008

risquei a vida no meu corpo
caderno de caligrafia de menina
(como acertar o horizonte tão reto?)

o borrão é um muro que se vê do espaço
as rasuras escuras escondem o erro
(qual era a palavra querida?)

as linhas continuam nas mãos
pequeninos túneis sem locomotiva
o buraco visto em uma agulha perdida
fechadura

a palavra emenda o mundo
lê histórias pra me fazer sorrir
se choro é porque adormeci

segunda-feira, fevereiro 18, 2008

ando pelas ruas de olhos fechados
sou meus pés descalços na pedra fria
sinto tudo que não posso ver

os bêbados riem porque desconhecem
crianças inocentes e cruéis pinçam as asas coloridas de uma borboleta
o dia é devorado com semente e polpa verde
e os líquidos todos vertem
cachoeira, pranto, sangue, sol

sou a frieza do gelo que se extingue até tornar-se saliva espessa
costuro-me por dentro
agulha engolida com linha prata, cicatriz
as obscuridades se abrem
nascem palavras
ai

domingo, fevereiro 17, 2008

caixinha na cabeceira
a chave em bolso de calça
esquecida na lavanderia
mala roxa guardando lembranças
retratos antigos
do que fui um dia
os cheiros dos homens que fui
as mechas dos cabelos que tive
e algumas pedras
o que pesa é a saudade
e aquilo que eu não sei
frágil tatuado no lado esquerdo
pra poder não partir

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

Oscuridad

Nem é maio, mas é tudo muito rápido e eu flutuo - um obelisco (monumento, falo) em névoa azul penetrando a treva. Nos esgotos correm os trens e os subterrâneos desejos, oscuridades sob os passos dos que sempre andam (e nem sempre vêem). Subtem-se, sublimados pelo ar de prata. Abelhas riscam o asfalto largo cercadas de concreto e história. As palavras gritam nas paredes das casas e das calçadas. Nem é maio, mas elas estão sempre esperando filhos, embaraçadas. Uma casa cor-de-rosa ergue-se majestosa fazendo sombra sobre os títeres. Nem é maio, mas venta. Buenos Aires é uma cidade pra se morrer lentamente, asfixiando-se em silêncios, cafés e tangos de Gardel.

terça-feira, janeiro 29, 2008

quando explode a bolha
arrebentam-se no ar
as cores do meu coração

sol ardente

a nova esfera
é breve borboleta
na morte da espera

(flutua soberba sobre minha cabeça
e sabe-se
redondamente certa)

segunda-feira, janeiro 28, 2008

escorrega entre os dedos
feito fio de pérolas
acaricia delicadamente
pele coberta de pó
olhando de perto
parece amor ou verso
mas é só tempo

domingo, janeiro 27, 2008

ovo estrelado em frigideira azul
carros colorem o asfalto
gente comendo
gente amando
gente esperando
gente

vida é prato-feito
pra quem não tem o que fazer

sábado, janeiro 26, 2008

Acaso o vento passe

abertas as portas da Casa
o Vento invade sem pudor
acaricia suas paredes mornas
escancara as limpas janelas
tira tudo do lugar
cobre o chão de folhas e flores
até parecer jardim

o Vento bagunça certezas de tijolos e concreto
até a Casa tornar-se ar
depois silencia e parte
batendo a porta

nas cores dos objetos
o tempo deposita pó
amarela os sorrisos dos retratos
só cantam os fantasmas e as coisas mortas

Casa trancada no sótão
só espera furacão

quarta-feira, janeiro 16, 2008

deixa-me a alma nua
arranca dela meus medos
escancara os segredos
faz-me pra sempre tua
rainha da tua punheta
tu és meu maior tesouro
coroa minha buceta
com esse teu corpo mouro

domingo, janeiro 13, 2008

O que é dito é faca
O que não é, ferida
O que é vivido é fato
O que não é, faísca

Do ponto ao traço
há outro ponto
É novo espaço

Onde está a ponte
pra chegar do outro lado?

sábado, janeiro 05, 2008

A noite escorrega
Um lençol cheio de estrelas
Nós em eclipse